sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Narciso




Todos os dias quando acordo, ainda sobre a cama, eu olho para o espelho e, através dele, enxergo um homem que desconheço. Não sei de onde ele veio e nem o que ele procura. Fisicamente falando, nós somos idênticos. Mas, apesar da semelhança, ele parece ser bem mais triste e solitário que eu. Talvez seja por isso que ele venha me procurar todas as manhãs. E, assim como eu, ele é a primeira pessoa a me olhar quando eu acordo. E continua a me olhar até que me chegue o ânimo fazendo com que da cama eu me levante. Quando o faço, ele também se levanta e sempre me acompanha. É como numa espécie de ritual. Ao entrar no banheiro, lá ele já se encontra no espelho a me esperar. Acredito que, pela solidão, ele tenha encontrado em mim um refúgio para fazer até mesmo as atividades mais simples e banais como pentear os cabelos e escovar os dentes. Os seus olhos tristonhos revelam que ele precisa de mim. É estranho porque dele eu não sei absolutamente nada.

Sentado à mesa de café-da-manhã e pensando que aquele triste rapaz de mim se ausentara, deparo-me com o seu triste semblante agora distorcido pelo fundo da colher na qual se encontra. Ele agora parece um monstro. Mas como é certo que todo monstro ama, sei que ele nutre por mim um profundo sentimento de amor. Apesar de não saber o que exatamente em mim o fez apaixonar-se tão loucamente a ponto de me acompanhar durante todo o dia. Como por exemplo, andando pelas ruas ele sempre aparece para mim nos vidros dos carros que cruzam o meu caminho. Ele faz isso para lembrar-me de que está sempre pensando em mim mesmo.

Ironicamente, ele está tão sincronizado a mim que é capaz de sentir aquilo que no exato momento eu também estou sentindo. Mas ele é bem mais emotivo e sentimental que eu e, por isso, demonstra mais emoção para com os meus sentimentos do que eu próprio. Diferentemente de mim, ele costuma chorar.

Quando, à noite, chego em casa abatido pelo cansaço do quotidiano eu o encontro novamente dentro do espelho e, apesar de aparentar a mais completa exaustão, ele me esboça um bonito e sincero sorriso. Talvez ele queira me mostrar que a vida ainda é bela e que ainda tenho em quem confiar.

Antes de dormir, eu me pergunto: Quem seria aquele homem que me observara durante todo o dia? Quem seria aquele homem que sabe mais a respeito de mim do que eu mesmo? Quem é ele e o que quer de mim? Não sei e talvez eu nunca saiba. Apenas tenho a certeza de que um dia morrerei sem nunca tê-lo conhecido como no fundo eu gostaria.

Um comentário:

Unknown disse...

Fiquei profundamente emocionado com o texto. O tema do outro sempre me intrigou. Clarice, Guimarães, Vergílio Ferreira, Fernando Pessoa e Sá Carneiro que o digam... Lembrei muito de um texto de Marina Colasanti, "A primeira só". Você escreve muitíssimo bem, tem sentimento e poesia.

Continue compartilhando os segredos íntimos das palavras conosco.

Beijo